terça-feira, 13 de março de 2012

Milton Schwantes: profeta do diálogo ecumênico

Por Justino Martínez Pérez
Milton nasceu a 26 de abril de 1946 em Tapera, no Rio Grande do Sul e morreu em São Paulo o dia primeiro de março de 2012. Encontrei Milton várias vezes na caminhada bíblica latino-americana a partir daquele encontro em Salvador de Bahia sobre o profeta Habacuc. Foi a primeira vez e foi algo surpreendente. Numa tarde de trabalho apresentou o profeta Habacuc e de um jeito todo especial. Fiquei encantado: tudo era fácil, simples, compreensível. Dir-se-ia que não havia dificuldades nem problemas. A partir de então foram várias as ocasiões que partilhamos juntos. No Curso Intensivo de Bíblia em 1993 em Santiago do Chile, veio para participar da avaliação dos primeiros três meses de curso e para assessorar a semana sobre os eixos do Pentateuco. Quando Milton chegou a Santiago a turma, enfrentando o clima e a poluição de Santiago, estava bastante cansada e o coordenador do curso queria aumentar mais uma tarde de trabalho, pois, segundo ele, era muita matéria e o tempo relativamente curto. O pessoal não queria nem saber, mas o coordenador insistia. Milton, que devia começar a primeira semana da segunda parte, disse que ele não precisava de mais tempo para expor a sua matéria. Limitou-se a convidar três pessoas para preparar uma dinâmica para o primeiro momento de oração. Naquele encontro descobri uma coisa interessante. Milton sabia ir ao essencial e atingir o objetivo da maneira mais simples e com uma palavra ou uma expressão definia a coisa mais complexa, e passava logo a outra coisa sem perder tempo. Era lúcido nas analises e diagnósticos e necessitava poucas palavras para ir ao essencial. Lembro que ao colocar os vários eixos do Pentateuco descobri que a partir do terceiro dia ele já tinha colocado o essencial de um modo descontraído. O resto era introdução e comentário. De Santiago guardo também uma definição de animação bíblica que dava Milton: a animação bíblica deve passar pelos fios domésticos do trabalho de grupo. Essa ideia iluminou muitas situações na minha caminhada em anos posteriores. Foi uma convicção que se fez realidade e foi comprovada muitas vezes na década seguinte. Em Santiago tive oportunidade de acompanhar Milton na livraria. Como em tantas outras viagens, ele voltava carregado de novos materiais para sua Bibliografia Bíblica Latino-americana. Eram livros técnico-científicos, e outros materiais mais populares. Tudo tinha espaço nesse coração apaixonado pela animação bíblica a serviço dos pobres e das comunidades cristãs. O Prof. Dr. Milton Schwantes, renomeado teólogo, biblista, professor e pastor luterano, graduou-se em teologia pela Escola Superior de Teologia (1970), São Leopoldo/RS; Doutor em Bíblia/AT pela Universidade de Heidelberg (Alemanha); e Doutor Honoris Causa pela Universidade de Marburgo (Alemanha 2002). Desde 1988 exercia como professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). E sua atuação docente esteve concentrada na área de Bíblia/AT em exegese, teologia bíblica, arqueologia do Antigo Oriente e ugarítico. Quando Milton Schwantes retornou ao Brasil, em agosto de 1974, foi indicado pelo Conselho Diretor da IECLB para atuar como pastor em Cunha Porã/SC. Nessa atividade, foi pastor querido por seus paroquianos. Pequeno exemplo de sua atividade foi a publicação do caderno Sementes. A linguagem simples e vigorosa fala de cristãos como sal da terra, do “meu povo” de Miquéias: o povo humilde e humilhado, as camadas mais pobres da população, e apela para que a Igreja Luterana volte seus olhos para os desvalidos. Com outros colegas, participou de elaboração de material para a catequese. Os pastores do então Distrito Uruguai da IECLB tinham sua própria editora: A Publicadora Uruguai (PU), e a série de suas publicações era designada de Cadernos do Povo. Ao lado destas publicações, desde 1977 publicava também, regularmente, auxílios homiléticos na série Proclamar Libertação. Milton participou destas atividades até julho de 1978, quando veio o convite para ser professor na Faculdade de Teologia da IECLB, em São Leopoldo, hoje Escola Superior de Teologia (EST). Milton passaria a ser professor de Antigo Testamento. A teologia bíblica que o ocupava desde os tempos da tese de doutorado, a experiência feita em Cunha Porã e os contatos ecumênicos faziam-no acentuar a dimensão profética do ministério pastoral e do ser do professor de Teologia Bíblica. Por isso, pediu para não residir no Morro do Espelho, sede das instituições da IECLB, em São Leopoldo, mas no Bairro São Borja, em casa simples. Queria fazer teologia no diálogo com os vizinhos, gente simples. A solidariedade com pastores e pastoras que atuavam em condições difíceis fê-lo optar pelo mesmo salário recebido por eles e elas, desistindo de um abono concedido aos professores de Teologia. A época era a da colocação de sinais. Sinal também foi colocado em sua preleção inaugural, expressão utilizada para a conferência pública com a qual a instituição Faculdade de Teologia apresentava seus novos professores. A conferência levou por título “Natã precisa de Davi”. O título sugestivo gerou polêmica e muita reflexão. Polêmicas foram também as preleções e seminários dirigidos pelo novo professor, que logo soube atrair a atenção e o carinho dos estudantes. Em pouco tempo, o exegeta ficaria conhecido além das fronteiras da pequena Igreja Luterana e começaria a dar sua contribuição para o estudo da Bíblia que se intensificava em todo o continente latino-americano. Milton concretizou teologia sobre a terra. Procurou tornar a Verdade concreta. A Verdade sempre é concreta, como é concreta a Verdade que liberta. Os explorados, exilados e oprimidos, para os quais foi formulada, muito lhe devem. Pobres, afrodescendentes, povos indígenas e mulheres que hoje andam de cabeça erguida muito devem às teologias formuladas em contexto. Os testemunhos sobre Milton se poderiam contar aos milhares, pois tantos eram os contatos que ele tinha na Europa e América Latina. Vejamos alguns. "Ficamos sem mais um profeta", lembra Adeodata Maria dos Anjos, atual diretora nacional do CEBI, "sua voz silenciou, mas continuará ecoando e transformando corações". "Voltado à leitura popular da Bíblia, Milton Schwantes foi um teólogo de vanguarda e um dos biblistas mais reconhecidos em todo o país, ao lado de Carlos Mesters e de todo o grupo do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI)", afirma o professor da EST, Dr. Roberto Zwetsch. Ex-aluno de Schwantes nas Faculdades EST e na Universidade Metodista de São Paulo, o professor Dr. Flávio Schmitt disse que a IECLB perdeu o testemunho de um cristão comprometido com a causa do Evangelho, incansável na defesa dos valores proferidos pelos profetas do Antigo Testamento. "Como professor e como grande amigo, Milton Schwantes foi uma pessoa que transcendeu qualquer fronteira étnica, racial ou geográfica, conseguindo se comunicar com o mundo através do ensino da Palavra de Deus", sublinhou Flávio. No entanto, a parte de todos seus grandes méritos acadêmicos, e de sua relevante contribuição na caminhada bíblica latino-americana, o mais importante e relevante em Milton Schwantes é o testemunho que nos deixou como ser humano e como irmão na fé. Uma pessoa que dedicou toda sua vida ao estudo e ao ensino bíblico; uma pessoa que contagiou a todos seus colegas, amigos e amigas, alunos e alunas com sua maneira de ser e com sua alegria e otimismo em relação à vida; uma pessoa que ensinou a ver e ler a Bíblia com os olhos do povo; mas, além de tudo isso, uma pessoa que não apenas ensinou Bíblia, mas que ajudou a formar uma nova geração de biblistas latino-americanos, e em diálogo e junto com outros relevantes biblistas, criou uma verdadeira escola bíblica ecumênica na América Latina. Milton: amigo, mestre, profeta..., muito nos ensinou. Ele sabia descomplicar as coisas e torna-las mais simples. Milton tinha a magia do diálogo ecumênico e sabia encantar com a Palavra de Deus. Agora, do outro lado desta vida, na Vida plena verá as coisas de modo novo e definitivo com aquela alegria que ele sempre soube partilhar.