quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Aquí estou. Envia-me!


Descobrir o que uma pessoa quer ser na vida forma parte das aventuras mais fascinantes do mundo e, muitas vezes, vai acompanhado de medo e não poucas dificuldades. Vejamos como conta o profeta Isaias o seu descobrimento de um acontecimento tão marcante na vida dele. Podemos ler o capítulo 6 do livro de este profeta genial(Is 6,1-13).

Estamos no ano 740 a. C. e Isaias tem uns 20 anos. Essa é a data mais provável para essa visão de Isaias que nos narra sua vocação-missão, não ao começo como Jeremias (1,1-19), mas já avançado o livro. O relato define a missão do profeta e põe a questão da conversão ou não dos destinatários da palavra profética. A morte de Ozias coincide com a entronização de seu filho Joatam, de quem se dizem coisas tão negativas (em 2 Rs 15,32-35 ou em 2 Cr 27,1-9), como de seu sucessor Acaz (2 Rs 16; 2 Cr 28). Esse é o contexto da profecia de Isaias, onde ele vai atuar. A profecia tem sempre lugar e hora, um contexto vital.

Isaias narra a visão de Javé sentado num trono alto e elevado, quer dizer, com os traços de um rei, em posição de seu exercício de poder. O profeta conta uma experiência transcendental na sua vida e na história da profecia. Destaca a majestuosidade de Deus, sentado no seu trono, rodeado de seus ministros e cobrindo o templo com a orla de seu manto. A designação de Deus como o Senhor é significativa com outras cenas em que Isaias terá que falar a um rei.

Podemos destacar três partes: a teofania (1-5); a sagração ou purificação (6-7), e a missão (8-13). Na primeira parte aparece outra chave de leitura da visão nas expressões de plenitude: o manto enche o templo, a glória de Javé enche a terra, a fumaça enche o templo. No centro está a expressão da plenitude da glória, que expressa fama/exaltação, peso/carga/energia e ao mesmo tempo esplendor: algo luminoso, sobretudo nas manifestações de Deus. Contrasta a plenitude do começo da visão com o “vazio” do final.

Serafins estão de pé, por cima do personagem que está sentado, indicando assim sua posição de serviço e entoam o tríplice “santo” que não é tanto uma invocação á santidade e virtude de Javé, quanto à sua exclusividade para Israel: é um Deus diferente daquele dos outros povos e reservado/consagrado a seu povo, um Deus “especial” para Israel (Croatto). Já desde 1,4 e 5,19 até o final (60,9.14) o livro de Isaias usará esse título divino como um dos seus eixos de sentido. A “santidade / exclusividade” de Javé exige a fidelidade absoluta de Israel para com Ele. Este é um tema fundamental para Isaias. Aqui se mostra como expressão fundamental de uma teologia que constitui o núcleo da mensagem de Isaias, e ordena a atitude que se exige diante de Deus, o Santo de Israel (fórmula que se encontra 11 vezes na primeira parte de Isaias e 13 na segunda, assim como em Jr 50,29; 51,5 ou nos Sl 71,22; 78,41; 89,19). A teologia da santidade de Deus, que exige a do povo, reaparecerá com Ezequiel, em Isaias 40-55 e em certas tradições sacerdotais conservadas em Jerusalém (cf. Levítico 17-26).

O Deus de Israel é chamado “Deus dos Exércitos”. O término evoca os exércitos de Israel em ordem de batalha; depois, como em Deuteronômio 4,19, designa as constelações ou elementos que constituem o universo organizado. A glória é, às vezes, utilizada como doxologia nos Salmos (Sl 72,19).

O segundo cenário (vv. 5-7) mostra a reação de Isaias diante da visão, e o rito de purificação e sagração de sua boca, que está destinada a falar a palavra de Deus. Isaias confessa ser uma pessoa de lábios impuros em meio de um povo de lábios impuros. Somente Isaias é purificado, logo será a palavra do profeta que invitará à conversão do povo, para que torne ao Senhor. Temos um grande contraste, o profeta de lábios impuros diz que viu o rei, Javé Sebaot. O viu, porém, está chamado a viver, a profetizar, não a morrer. Ver o Senhor ajuda a viver de uma maneira nova. Um serafim leva a cabo a purificação com uma brasa da boca, representando a pessoa toda. O profeta experimenta uma purificação com fogo! E sua culpa lhe foi tirada e seu pecado perdoado, antecipo do que o Senhor quer realizar com seu povo.

A terceira cena (vv. 8-10), não é de visão, mas de audição. Escuta a voz do Senhor que convida a ir, a pôr-se em pé de missão da parte de Deus. O profeta é o “porta-voz” de Deus, leva sempre sua palavra e fala com a mesma autoridade de Deus, por isso usa a expressão “oráculo”, ou “palavra do Senhor” cada vez que se dirige ao povo.

Aqui estou: envia-me!

Vejamos o chamado de Isaias a partir de outros relatos de vocação-missão. Em contraste com Moisés (Ex 3-4), Isaias responde imediatamente. Moisés duvida, apresentando mil desculpas para não aceitar a missão. Jeremias (capítulo 1), também indica sua falta de idoneidade: não saber falar, indicando a qualidade principal para poder realizar a missão. Jacob passa toda uma noite de luta até o sol raiar. Cada pessoa responde ao chamado de Deus desde o mais íntimo da sua personalidade.

Na resposta de Isaias à missão ressoa a disponibilidade de Samuel (1 Sm 3,1-21), a obediência e prontidão de fazer a vontade do orante do Salmo 40,7-11 que logo a Carta aos Hebreus aplicará à obediência total e radical de Jesús à vontade do Pai (Hb 10,5-7); ressoa também a “servicialidade incondicional” de Maria em cumprir a Palavra do Senhor (Lc 1,38); igualmente ressoa a generosidade de Pedro e dos outros discípulos: “nós deixamos tudo e te seguimos”; e, finalmente, evoca a resposta dos primeiros discípulos que encontramos nos Evangelhos como modelo de resposta diante da chamada-missão de todo cristão (Mc 1,16-20;18-22; Lc 5,1-11).
O profeta é chamado a profetizar a esse povo que parece fazer referência a algumas pessoas com responsabilidade, os dirigentes, especialmente os de Jerusalém.

O profeta anuncia a mensagem a esse povo, mas a resposta é negativa, expressada na fórmula: “Escutem com os ouvidos, mas não entendam; olhem com os olhos, mas não compreendam!”. A incapacidade de “entender - compreender” é a atitude básica criticada por essa mensagem do profeta. Quer dizer, tanto Isaias, como Ezequiel (“não te escutarão porque não querem escutar”: Ez 3,4-9) mostram a má vontade para escutar Javé. A fórmula de Isaias é como um trocadilho que poderíamos traduzir desta maneira: Não há pior surdo que aquele que não quer escutar, e não há pior cego que aquele que não quer ver. Quer dizer, a missão de Isaias vai fracassar porque não vão querer escutar a sua mensagem. Mesmo assim o profeta leva adiante a sua missão até o fim, como tantos na América Latina que tombaram no cumprimento da sua missão. Segundo a tradição, Isaias teria sido morto sendo cortado pela metade com uma serra.

BIBLIOGRAFIA:

ABREGO DE LACY J. M., Los libros proféticos, IEB 4, Estella, Verbo divino 2001, pp.117-118.

ALONSO SCHOEKEL L. – SICRE J. L., Profetas. I. Isaías- Jeremías, Madrid, Cristiandad 1980, pp. 139-142.

CROATTO Severino, Isaías. Vol. I: 1,39. O profeta da justiça e da fidelidade, São Paulo - Petrópolis, Metodista-Sinodal-Vozes 1989, pp.57-62.

JUNCO GARZA Carlos, Palabra sin fronteras. Los profetas de Israel, México, San Pablo 32007.

sábado, 3 de setembro de 2011

APARECIDA E A ANIMAÇÃO BÍBLICA DA PASTORAL


247. Encontramos Jesus na Sagrada Escritura, lida na Igreja. A Sagrada Escritura, “Palavra de Deus escrita por inspiração do Espírito Santo”, é, com a Tradição, fonte de vida para a Igreja e alma de sua ação evangelizadora. Desconhecer a Escritura é desconhecer Jesus Cristo e renunciar a anunciá-lo. Daí o convite de Bento XVI: “Ao iniciar a nova etapa que a Igreja missionária da América Latina e do Caribe se dispõe a empreender, a partir desta V Conferência em Aparecida, é condição indispensável o conhecimento profundo e vivencial da Palavra de Deus, Por isso, é necessário educar o povo na leitura e na meditação da Palavra: que ela se converta em seu alimento para que, por experiência própria, vejam que as palavras de Jesus são espírito e vida (cf. Jo 6,63). Do contrário, como vão anunciar uma mensagem cujo conteúdo e espírito não conhecem profundamente? É preciso fundamentar nosso compromisso missionário e toda a nossa vida na rocha da Palavra de Deus”.

248. Faz-se, pois, necessário propor aos fiéis a Palavra de Deus como dom do Pai para o encontro com Jesus Cristo vivo, caminho de “autêntica conversão e de renovada comunhão e solidariedade”.
Essa proposta será mediação de encontro com o Senhor se for apresentada a Palavra revelada, contida na Escritura, como fonte de evangelização. Os discípulos de Jesus desejam alimentar-se com o Pão da Palavra: querem chegar à interpretação adequada dos textos bíblicos, empregá-los como mediação de diálogo com Jesus Cristo, e a que sejam alma da própria evangelização e do anúncio de Jesus a todos. Por isso, a importância de uma “pastoral bíblica”, entendida como animação bíblica da pastoral, que seja escola de interpretação ou conhecimento da Palavra, de comunhão com Jesus ou oração com a Palavra, e de evangelização inculturada ou de proclamação da Palavra. Isso exige, da parte dos bispos, presbíteros, diáconos e ministros leigos da Palavra, uma aproximação à Sagrada Escritura que não seja só intelectual e instrumental, mas com coração “faminto de ouvir a Palavra do Senhor” (Am 8,11).

249. Entre as muitas formas de se aproximar da Sagrada Escritura existe uma privilegiada à qual todos somos convidados: a Lectio divina ou exercício de leitura orante da Sagrada Escritura.

Essa leitura orante, bem praticada, conduz ao encontro com Jesus-Mestre, ao conhecimento do mistério de Jesus-Messias, à comunhão com Jesus-Filho de Deus e ao testemunho de Jesus-Senhor do universo. Com seus quatro momentos (leitura, meditação, oração, contemplação), a leitura orante favorece o encontro pessoal com Jesus Cristo semelhante ao modo de tantos personagens do evangelho: Nicodemos e sua ânsia de vida eterna (cf. Jo 3,1-21), a Samaritana e seu desejo de culto verdadeiro (cf. Jo 4,1-42), o cego de nascimento e seu desejo de luz interior (cf. Jo 9), Zaqueu e sua vontade de ser diferente (cf. Lc 19,1-10)... Todos eles, graças a esse encontro, foram iluminados e recriados porque se abriram à experiência da misericórdia do Pai que se oferece por sua Palavra de verdade e vida. Não abriram o coração para algo do Messias, mas ao próprio Messias, caminho de crescimento na “maturidade conforme a sua plenitude” (Ef 4,13), processo de Discipulado, de comunhão com os irmãos e de compromisso com a sociedade.

O DOM DA LIBERDADE

Deus colocou em teu coração
uma tocha
acesa de beleza e sabedoria;
tristeza é
apagar esta tocha e abafá-la
nas cinzas.

Deus te deu um espírito
com asas
para vagares pelo espaço
do amor e da liberdade.

Não é loucura
podar as asas com as próprias mãos
e tolerar
que a alma rasteje por terra
como um verme?
Kahlil Gibran