“É preciso fundamentar nosso compromisso missionário e toda a nossa vida na rocha da Palavra de Deus” (Doc. Aparecida 247)
segunda-feira, 9 de abril de 2012
CARTA ABERTA DOS MISSIONÁRIOS COMBONIANOS DO BRASIL NORDESTE EM FAVOR DO POVO AWÁ-GUAJÁ DO MARANHÃO
Os Missionários Combonianos do Brasil Nordeste, ao tomar conhecimento de mais uma campanha internacional em favor do povo indígena Awá-Guajá (Maranhão), encabeçada pela ONG inglesa Survival, vêm a público reafirmar seu apoio irrestrito a tudo o que vem salvaguardar a integridade física, cultural e territorial dessa nação indígena. Há exatos 20 anos foi publicada a portaria ministerial de demarcação (Nº 373/92), mas a lentidão dos procedimentos processuais, os inúmeros recursos e prazos legais interpostos e, principalmente, as pressões políticas e econômicas regionais permitiram que o território Awá fosse progressiva e dramaticamente invadido em níveis gigantescos. Em que pesem as sucessivas decisões da Justiça Federal que vêm reconhecendo sistematicamente a constitucionalidade do território ocupado pelo povo Awá (118.000 ha.), a situação atual é literalmente caótica.
Madeireiros da região de Buriticupu, Bom Jardim, São João do Caru, invadem e saqueiam à luz do dia. A Agropecuária Alto Turiaçu, que ocupa ilegalmente 85% do território Awá, associada a povoados e pequenos centros rurais que se instalaram após a portaria de demarcação, vem deixando um rasto de destruição e de ‘terra queimada’. Criminosa foi à época da publicação da portaria de demarcação a omissão do governo federal que não interveio tempestivamente permitindo que se consumasse a invasão do território Awá por numerosos não índios e que a situação assumisse as proporções incontroláveis de hoje. Estradas vicinais vêm sendo percorridas por veículos de passageiros e de cargas bem no coração da terra Awá sem nenhum tipo de fiscalização e/ou inibição oficial.
Denúncias não têm faltado, campanhas foram flagradas, reportagens e serviços jornalísticos têm sido publicados. O drama dos Awá não tem conhecido pausas e nem alívio. Tudo parece ter assumido uma configuração de impotência e de derrota. A recente sentença emitida unanimemente pela 6ª Turma do Tribunal Regional Federal em Brasília determinando que a UNIÃO e a FUNAI promovam o registro da área demarcada, e que no prazo de um ano removam as pessoas não-índias que se encontram no interior da terra demarcada, bem como que se proceda ao desfazimento das construções edificadas no perímetro da Portaria 373/92, nos dão um novo alento. Perguntamo-nos, no entanto, se o Governo Federal nessa atual conjuntura tem interesse e vontade em colocar como prioridade a situação dos Awá do Maranhão. Afinal, eles são uma das inúmeras vítimas da cobiça insana e incontrolável de ruralistas, madeireiros, e de seus tentáculos e aliados políticos que legislam em causa própria nesse País!
Hoje, na proximidade da festa do ‘Bom Pastor’, como missionários nessa terra tão duramente provada queremos alertar a sociedade em geral e aqueles que são chamados a administrar o País como o fez Jesus de Nazaré diante do poder avassalador do Império. Não obstante tantos mercenários que se aliam a lobos famintos e insaciáveis é preciso acolher o desafio de conhecer as angústias e os sonhos das ‘ovelhas’. E colocar a própria vida à disposição delas, a fim de que a sua própria vida seja garantida e protegida num redil/reino onde, longe de toda ameaça, vivam a unidade e a fraternidade. E àqueles pastores civis e religiosos que apascentam somente a si mesmos, que fogem, que não cuidam das ovelhas feridas e abatidas, deixando-as se dispersar, que venha o julgamento divino expressado pelo profeta Ezequiel: ‘Impedirei esses pastores de apascentarem o meu rebanho. Deste modo eles não tornarão a apascentar-se a si mesmos. Livrarei minhas ovelhas da sua boca e não continuarão a servir-lhes de presa (Ez. 34,10)
São Luis, 29 de abril, 2012 – Festa do Bom Pastor
SAÚDE E DOENÇA NO NOVO TESTAMENTO
0. Introdução: Jesus e os doentes
O anúncio da missão de Jesus na sinagoga de Nazaré inclui “a recuperação da vista aos cegos” (Lc 4,18). No entanto, em toda ação de Jesus, percebemos inúmeros gestos de quem está preo¬cupado em recuperar a saúde. Não apenas no aspecto biológico, mas promover o ser humano para ter uma vida digna, saudável e reintegrada à sociedade, porque a doença significava exclusão social e, às vezes, religiosa. Diz o Evangelho: “Jesus percorria toda a Galileia, ensinando nas sinagogas deles, anunciando a Boa Nova do Reino e curando toda espécie de doença e enfermidade do povo” (Mt 4,23). As obras de Jesus manifestam, assim, sua origem divina e sua messianidade. É dessa forma que ele responde aos discípulos de João Batista: “Ide contar a João o que vistes e ouvistes: cegos recuperam a vista, paralíticos andam, leprosos são purificados e surdos ouvem, mortos ressuscitam e a pobres se anuncia a Boa Nova” (Lc 7,22). Com sua ação evangelizadora, Jesus não apenas cura os doentes, mas resgata o ser humano para o meio da sociedade, dando-lhe dignidade e apresenta uma nova forma de relacionar-se com as pessoas necessitadas. Os Evangelhos são repletos de relatos de Jesus curando os doentes. Jesus não tem só poder de curar, mas também de perdoar pecados: ele veio curar o homem inteiro; é o médico de que necessi¬tam os doentes. Sua compaixão para com todos aqueles que sofrem é tão grande que ele se identifica com eles: “estive doente e me visitaste” (Mt 25,36).
1. A cura do cego de nascença O capítulo nono do Evangelho de São João relata o encontro de Jesus com um cego de nascença (Jo 9,1-41). A cegueira era comum no Oriente Médio. De acordo com o relato evangélico, são os discípulos que per¬cebem a presença do cego e propõem uma questão a Jesus. A dúvida dos discípulos, ao encontrarem o cego, é de ordem teológica. “Quem pecou para que ele nascesse cego?” (Jo 9,2) Seguindo a teologia tradicional, os discípulos propõem a Jesus uma pergunta pela causa da cegueira: teria o homem pecado ou teriam sido seus pais (Jo 9,2), pois havia a compreensão de que o pecado dos pais poderia prejudicar os descendentes, por várias gerações. A resposta de Jesus aos discípulos é clara: “nem ele, nem seus pais pecaram, mas é uma ocasião para que se manifestem nele as obras de Deus” (Jo 9,3). Cristo interrompe a tradição de vincular doen¬ça e pecado e oferece aos discípulos, aos fariseus, aos judeus, aos familiares do cego e ao próprio cego uma catequese sobre sua missão. Jesus apresenta-se como ‘luz do mundo’ e luz que se manifesta pelas obras que realiza. Essa experiência permite que o próprio cego se transforme em discípulo. Ao romper com a teologia corrente e afirmar que a doença não é fru¬to de pecado, nem castigo de Deus, Jesus acaba também com a lógica excludente de atribuir a culpa da enfermidade a Deus e por decorrên¬cia ao pecado, o que gerava e, ao mesmo tempo, legitimava a exclu¬são social e religiosa de quem se achasse doente. A narrativa do sinal é encerrada com a constatação: “o cego foi, lavou-se e voltou enxergando” (Jo 9,7). A finalidade catequética do evangelista está em evidenciar a missão de Jesus como luz do mundo (Jo 8,12). Por isso joga muito com as palavras ‘ver’ e ‘crer’.
2. Bom samaritano: paradigma do cuidado. A parábola do bom samaritano é entendida como paradigma do cuidado. No contexto da CF, o bom samaritano é uma figura emblemática para o cuidado que se espera da parte dos profissionais e servi¬dores da saúde. A parábola ajuda a pensar sobre a solidariedade. A parábola do Bom Samaritano lembra a condição de fra¬gilidade humana, mas também indica que os seguidores de Je¬sus devem descobrir a importância do cuidado. O samaritano é aquele que em face da necessidade do outro a assimila e se deixa transformar por ela. Essa atitude é revelada nos sete verbos e indica um modo de ser diante do outro, que pode iluminar o engaja¬mento da Igreja e dos cristãos no campo da saúde pública.
a. Ver. - a primeira atitude foi enxergar a realidade. Ele não ignorou a presença de alguém caído à margem da estrada. Esta atitude, porém, não é suficiente. O ‘sacerdote’ e o ‘levita’ que haviam passa¬do antes dele também ‘viram’, mas passaram adiante. “Bom samaritano é todo homem que se detém junto ao sofrimento de outro homem, seja qual for o sofrimento”.
b. Compadecer-se. - a percepção do caído condu¬ziu o Samaritano à atitude de compaixão. A compaixão diante da fragilidade do outro desencadeou as demais atitudes tomadas pelo samaritano. Bom samaritano é todo homem sensível ao sofrimento do outro, o homem que se ‘comove’ diante da desgraça do próximo. Se Cristo, conhece¬dor do íntimo do homem põe em realce esta comoção, quer dizer que ela é importante para todo o nosso modo de comportar-nos diante do sofrimento de outrem.
c. Aproximar-se. - ao contrário dos que o antecederam, o via¬jante estrangeiro aproximou-se do caído, foi ao seu encon¬tro, não passou adiante. No homem assaltado, ferido, ne¬cessitado de cuidado, reconheceu seu próximo, apesar das muitas diferenças entre ambos.
d. Curar. - a presença do outro exige cuidado. A aproximação, a compaixão não são simplesmente sentimentos benevolentes, elas se tornam obra, se transformam em ação.
e. Colocar no próprio animal - este passo é significa¬tivo. Ele colocou a serviço do outro os próprios bens: primeiro seu meio de transporte, depois o que trazia para seu autocuidado, dinheiro.
f. Levar à hospedaria- O samaritano envol¬veu outras pessoas e estruturas para não deixar morrer aquele que fora assaltado. Nem sempre conseguimos responder a todas as demandas, mas podemos mobilizar outras forças para atender e cui¬dar de quem sofre. Trata-se de criar parcerias. A Igreja em sua missão profética, é cha-mada a anunciar o Reino aos doentes e a todos os que sofrem, cuidando para que seus direitos sejam reconhecidos e respeita¬dos, assim como a denunciar o pecado e suas raízes históricas, sociais, políticas e econômicas, que produzem males como doença e a morte.
g. Cuidar. Expressa o conjunto da intervenção do samaritano. Trata-se de um cuidado coleti¬vo, que envolveu personagens, recursos, estruturas... A razão é que agora ela incluiu outra pessoa, um compromisso que não estava planejado no início da viagem. Cuidar passa a ser uma missão. A figura do bom samaritano assume a condição de modelo para a ação evangelizadora da Igreja no campo da saúde e no cam¬po da defesa das políticas públicas. O espírito do samaritano deve impulsionar o trabalho da igreja. Como mãe amorosa, ela deve aproximar-se dos doentes, dos fracos, dos feridos, de todos os que se encontram jogados no caminho a fim de acolhê-los, cuidar deles, infundir-lhes força e esperança. No restabelecimento da saú¬de física está em jogo mais que a vitória imediata sobre a enfermidade. Quando nos aproximamos dos enfermos, aproximamo-nos de todo ser hu¬mano de suas relações porque a enfermidade o afeta integralmente.
3. Saúde no Evangelho de Mateus
Queremos salientar o jeito como o Evangelho de Mateus fala da doença em relação a Jesus. Em Mt 4,23 temos um sumário significativo da atividade evangelizadora de Jesús: “Jesus andava por toda a Galileia, ensinando em suas sinagogas, pregando a Boa Notícia do Reino, e curando todo tipo de doença e enfermidade do povo”. Colocam-se as três atividades que realiza Jesús: ensina nas sinagogas, prega a Boa Notícia do Reino e cura todo tipo de doença e enfermidade do povo. O curar de Jesús forma parte do anúncio do Reino de Deus: se ele expulsa os demônios é também sinal de que o reino de Deus chegou. É interessante sublinhar que esse versículo 23 faz inclusão com 9,35 onde se diz textualmente: “Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas, pregando a Boa Notícia do Reino, e curando todo tipo de doença e enfermidade”. Este arco narrativo encerra o sermão do Monte e os capítulos 8-9 onde se narram dez milagres de curas. Assim construída esta sequência podemos ver como tanto a mensagem como os gestos curativos de Jesus formam parte da missão fundamental do anúncio do Reino de Deus. Além disso, temos que acrescentar que 9,35-38 é um texto-dobradiça, quer dizer, fecha ou serve de conclusão para a primeira unidade (4,23-9,35) e ao mesmo tempo abre ou aponta para unidade seguinte onde se fala da missão dos discípulos (Capítulos 10,1-11,1). O que se diz de Jesús é dito também como missão da Igreja a ser realizado nos dias de hoje e sempre. 4. A participação humana nos sofrimentos de Cristo O sofrimento redentor de Cristo leva o homem ao reencontro com seus próprios sofrimentos. Este processo foi vivido por são Paulo: “Com Cristo fui pregado na cruz. Eu vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim. Minha vida atual na carne, eu a vivo na fé, crendo no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,19-20). A cruz de Cristo ilumina a vida humana, especialmente o so¬frimento e a morte, porque o anúncio da cruz inclui a notícia da ressurreição, a qual confere uma iluminação nova ao sofrimento. Bento XVI lembra que a Igreja como comunidade deve praticar o amor. No evangelista João, a mensagem de Cristo parece conter apenas um grande mandamento: “Eu vos dou um novo mandamen¬to: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós de¬veis amar-vos uns aos outros” (Jo 13, 34). É o amor, no Espírito, que constitui a comunidade eclesial e a impulsiona ao serviço, a acorrer aos sofridos e necessitados.
Justino Martínez Pérez
terça-feira, 13 de março de 2012
Milton Schwantes: profeta do diálogo ecumênico
Por Justino Martínez Pérez
Milton nasceu a 26 de abril de 1946 em Tapera, no Rio Grande do Sul e morreu em São Paulo o dia primeiro de março de 2012.
Encontrei Milton várias vezes na caminhada bíblica latino-americana a partir daquele encontro em Salvador de Bahia sobre o profeta Habacuc. Foi a primeira vez e foi algo surpreendente. Numa tarde de trabalho apresentou o profeta Habacuc e de um jeito todo especial. Fiquei encantado: tudo era fácil, simples, compreensível. Dir-se-ia que não havia dificuldades nem problemas.
A partir de então foram várias as ocasiões que partilhamos juntos. No Curso Intensivo de Bíblia em 1993 em Santiago do Chile, veio para participar da avaliação dos primeiros três meses de curso e para assessorar a semana sobre os eixos do Pentateuco. Quando Milton chegou a Santiago a turma, enfrentando o clima e a poluição de Santiago, estava bastante cansada e o coordenador do curso queria aumentar mais uma tarde de trabalho, pois, segundo ele, era muita matéria e o tempo relativamente curto.
O pessoal não queria nem saber, mas o coordenador insistia. Milton, que devia começar a primeira semana da segunda parte, disse que ele não precisava de mais tempo para expor a sua matéria. Limitou-se a convidar três pessoas para preparar uma dinâmica para o primeiro momento de oração. Naquele encontro descobri uma coisa interessante. Milton sabia ir ao essencial e atingir o objetivo da maneira mais simples e com uma palavra ou uma expressão definia a coisa mais complexa, e passava logo a outra coisa sem perder tempo. Era lúcido nas analises e diagnósticos e necessitava poucas palavras para ir ao essencial. Lembro que ao colocar os vários eixos do Pentateuco descobri que a partir do terceiro dia ele já tinha colocado o essencial de um modo descontraído. O resto era introdução e comentário.
De Santiago guardo também uma definição de animação bíblica que dava Milton: a animação bíblica deve passar pelos fios domésticos do trabalho de grupo. Essa ideia iluminou muitas situações na minha caminhada em anos posteriores. Foi uma convicção que se fez realidade e foi comprovada muitas vezes na década seguinte.
Em Santiago tive oportunidade de acompanhar Milton na livraria. Como em tantas outras viagens, ele voltava carregado de novos materiais para sua Bibliografia Bíblica Latino-americana. Eram livros técnico-científicos, e outros materiais mais populares. Tudo tinha espaço nesse coração apaixonado pela animação bíblica a serviço dos pobres e das comunidades cristãs.
O Prof. Dr. Milton Schwantes, renomeado teólogo, biblista, professor e pastor luterano, graduou-se em teologia pela Escola Superior de Teologia (1970), São Leopoldo/RS; Doutor em Bíblia/AT pela Universidade de Heidelberg (Alemanha); e Doutor Honoris Causa pela Universidade de Marburgo (Alemanha 2002). Desde 1988 exercia como professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). E sua atuação docente esteve concentrada na área de Bíblia/AT em exegese, teologia bíblica, arqueologia do Antigo Oriente e ugarítico.
Quando Milton Schwantes retornou ao Brasil, em agosto de 1974, foi indicado pelo Conselho Diretor da IECLB para atuar como pastor em Cunha Porã/SC. Nessa atividade, foi pastor querido por seus paroquianos. Pequeno exemplo de sua atividade foi a publicação do caderno Sementes. A linguagem simples e vigorosa fala de cristãos como sal da terra, do “meu povo” de Miquéias: o povo humilde e humilhado, as camadas mais pobres da população, e apela para que a Igreja Luterana volte seus olhos para os desvalidos. Com outros colegas, participou de elaboração de material para a catequese. Os pastores do então Distrito Uruguai da IECLB tinham sua própria editora: A Publicadora Uruguai (PU), e a série de suas publicações era designada de Cadernos do Povo. Ao lado destas publicações, desde 1977 publicava também, regularmente, auxílios homiléticos na série Proclamar Libertação. Milton participou destas atividades até julho de 1978, quando veio o convite para ser professor na Faculdade de Teologia da IECLB, em São Leopoldo, hoje Escola Superior de Teologia (EST).
Milton passaria a ser professor de Antigo Testamento. A teologia bíblica que o ocupava desde os tempos da tese de doutorado, a experiência feita em Cunha Porã e os contatos ecumênicos faziam-no acentuar a dimensão profética do ministério pastoral e do ser do professor de Teologia Bíblica. Por isso, pediu para não residir no Morro do Espelho, sede das instituições da IECLB, em São Leopoldo, mas no Bairro São Borja, em casa simples. Queria fazer teologia no diálogo com os vizinhos, gente simples. A solidariedade com pastores e pastoras que atuavam em condições difíceis fê-lo optar pelo mesmo salário recebido por eles e elas, desistindo de um abono concedido aos professores de Teologia.
A época era a da colocação de sinais. Sinal também foi colocado em sua preleção inaugural, expressão utilizada para a conferência pública com a qual a instituição Faculdade de Teologia apresentava seus novos professores. A conferência levou por título “Natã precisa de Davi”. O título sugestivo gerou polêmica e muita reflexão. Polêmicas foram também as preleções e seminários dirigidos pelo novo professor, que logo soube atrair a atenção e o carinho dos estudantes. Em pouco tempo, o exegeta ficaria conhecido além das fronteiras da pequena Igreja Luterana e começaria a dar sua contribuição para o estudo da Bíblia que se intensificava em todo o continente latino-americano.
Milton concretizou teologia sobre a terra. Procurou tornar a Verdade concreta. A Verdade sempre é concreta, como é concreta a Verdade que liberta. Os explorados, exilados e oprimidos, para os quais foi formulada, muito lhe devem. Pobres, afrodescendentes, povos indígenas e mulheres que hoje andam de cabeça erguida muito devem às teologias formuladas em contexto.
Os testemunhos sobre Milton se poderiam contar aos milhares, pois tantos eram os contatos que ele tinha na Europa e América Latina. Vejamos alguns.
"Ficamos sem mais um profeta", lembra Adeodata Maria dos Anjos, atual diretora nacional do CEBI, "sua voz silenciou, mas continuará ecoando e transformando corações".
"Voltado à leitura popular da Bíblia, Milton Schwantes foi um teólogo de vanguarda e um dos biblistas mais reconhecidos em todo o país, ao lado de Carlos Mesters e de todo o grupo do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI)", afirma o professor da EST, Dr. Roberto Zwetsch.
Ex-aluno de Schwantes nas Faculdades EST e na Universidade Metodista de São Paulo, o professor Dr. Flávio Schmitt disse que a IECLB perdeu o testemunho de um cristão comprometido com a causa do Evangelho, incansável na defesa dos valores proferidos pelos profetas do Antigo Testamento. "Como professor e como grande amigo, Milton Schwantes foi uma pessoa que transcendeu qualquer fronteira étnica, racial ou geográfica, conseguindo se comunicar com o mundo através do ensino da Palavra de Deus", sublinhou Flávio.
No entanto, a parte de todos seus grandes méritos acadêmicos, e de sua relevante contribuição na caminhada bíblica latino-americana, o mais importante e relevante em Milton Schwantes é o testemunho que nos deixou como ser humano e como irmão na fé. Uma pessoa que dedicou toda sua vida ao estudo e ao ensino bíblico; uma pessoa que contagiou a todos seus colegas, amigos e amigas, alunos e alunas com sua maneira de ser e com sua alegria e otimismo em relação à vida; uma pessoa que ensinou a ver e ler a Bíblia com os olhos do povo; mas, além de tudo isso, uma pessoa que não apenas ensinou Bíblia, mas que ajudou a formar uma nova geração de biblistas latino-americanos, e em diálogo e junto com outros relevantes biblistas, criou uma verdadeira escola bíblica ecumênica na América Latina.
Milton: amigo, mestre, profeta..., muito nos ensinou. Ele sabia descomplicar as coisas e torna-las mais simples. Milton tinha a magia do diálogo ecumênico e sabia encantar com a Palavra de Deus. Agora, do outro lado desta vida, na Vida plena verá as coisas de modo novo e definitivo com aquela alegria que ele sempre soube partilhar.
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012
Rodeias-me de cantos de libertação. Espiritualidade dos Salmos
A editora Claret de Barcelona acaba de publicar o livro de Justino Martínez Pérez: M´embolcalles amb cants d´alliberament. Espiritualitat dels Salms, Claret, Barcelona 2012 (Rodeias-me de cantos de libertação. Espiritualidade dos Salmos).
O Autor mostra que muitas personas se aproximaram dos Salmos e encontraram um manancial onde refrescar sua sede de vida e esperança. Essa experiência realizada em grupo na Escola de Animação Bíblica em Barcelona durante três anos mostrou-se surpreendente e maravilhosa.
Os Salmos nos falam da fidelidade, bondade e misericórdia infinita de Deus. Os Salmos nos fazem sentir todo o ritmo da vida, e por isso o salmista sente que a música lhe rodeia, que lhe protege a mão de Deus e exulta na ação de graças e em cânticos de libertação (Sl 32,7).
O salmista, na sua gramática da existência, conjuga todos os sentimentos pessoais e comunitários na súplica, no louvor e na ação de graças, predominando, sobretudo, os salmos de súplica, pessoal ou comunitária.
A finalidade de nosso livro sobre os Salmos é como dar uma carga de esperança (1 Pd 3,15) a nosso mundo que parece que tem os caminhos cortados, com as asas repregadas, sem ilusão, ou ao mais, ousa sonhar um voo de galinha: curto, baixo e rasante, ou tende a não ver mais horizonte que aquilo que traz proveito e interesses a curto prazo, esquecendo os pobres, aqueles que não contam, ou sofrem.
Nós cremos, porém, que a partir da experiência da Palavra de Deus que o salmista nos apresenta de mil maneiras e por seu impulso outro mundo é possível. Podemos - claro que sim!- sonhar um mundo novo a partir da Palavra criadora de Deus.
terça-feira, 3 de janeiro de 2012
BÍBLIA: SENTIR TODO O RITMO DA VIDA
Você, começou a surfar? Continue. Se não começou, está na hora! Vamos aprofundar o livro de Jó. Como ele, as pessoas ficam confusas, diante do sofrimento do justo, e se perguntam: existe uma resposta? Existe. Jó mostra caminhos novos de resistência e de encontro com Deus, um modo de sentir todo o ritmo da vida.
Jó: uma história com final feliz
Vamos passear pelo livro de Jó. Se eu tivesse que falar para crianças contaria assim. "Era uma vez um homem... chamado Jó. O país dele se chamava Hus. Jó era um homem justo, amava a Deus e evitava fazer coisas ruins. Tinha sete filhos e três filhas. Possuía muitas ovelhas, bois, camelos, cavalos. Era o rei do gado. Era o mais rico de todos. Era um cara legal!
As coisas começaram a ir mal e perdeu tudo. Jó procurava entender o recado Deus e dizia: Deus deu, Deus tirou. Bendito seja Deus!
Mesmo perdendo tudo, não se queixava com Deus, com o destino ou com a sorte dele. Depois de muitas provas, Deus encheu de bens a casa dele e dobrou tudo o que tinha no começo e vivia feliz, coberto de anos em companhia dos filhos e filhas, e dos netos".
– Gostaram da história?
– Gostamos. É uma história linda, com final feliz!
– Vamos ler juntos. Está no livro de Jó, capítulo primeiro e segundo. E nós, feito crianças, depois de ler os dois primeiros capítulos, vamos pular alguns capítulos... até chegar ao capítulo 42. É só ler o capítulo 42, do versículo 10 a 17.
Vamos ao teatro
Os entendidos dizem que alguém encontrou essa história e aproveitou para debater o tema: o sofrimento do inocente. O que fez? Pegou as pontas do começo e do fim. Esticou... e no meio encaixou do capítulo 3 ate 42,9. Simples e criativo!
Podemos imaginar que estamos no teatro. As luzes apagadas, uma luz tênue na sala, música de fundo, o narrador entra em ação... "Era uma vez... um homem chamado Jó, da terra de Hus. Jó era íntegro e reto, temia a Deus e evitava o mal..." e continua narrando. O sofrimento se abate sobre ele. Perde tudo o que tem inclusive os filhos, cai doente e acaba num monte de lixo. A única coisa que lhe sobra é um caco para coçar as feridas (Jó 2,7-8). A própria esposa o aconselha de amaldiçoar a Deus. Mesmo assim Jó permanece fiel (Jó 1,20; 2,9-10) até que chegam três amigos que, diante do enorme sofrimento, ficam sem palavras. Todo o mundo está em silêncio, acompanhando um homem na dor. Silêncio, dor, silêncio... por sete dias e sete noites!
O narrador sai. Começa o debate. Na cabeça fica o tema e o roteiro que nos entregaram na entrada: Prólogo (cap. 1-2) e Conclusão (42,7-16). Diálogo entre Jó e seus amigos (3-27). Elogio da Sabedoria (28). Discurso de Jó (29-31). Discursos de Eliú (32-37). Diálogo entre Jó e Deus (38 até 42,6).
O grito e a teimosia de Jó
Ainda na escuridão, percebemos as silhuetas de Jó e seus amigos. De repente se escuta um grito no meio do silêncio de uma semana e de uma vida de desespero. Alguém grita. Não dá para reconhecer o rosto (Jó 2,12). Abre a boca e amaldiçoa o dia de seu nascimento (Jó 3,1). Estamos acompanhando uma pessoa que está na amargura (3,20) e "vive sem paz, sem tranquilidade e sem descanso, em contínuo sobressalto" (Jó 3,26). Nesse rosto desfigurado, como aquele que retrata Isaías (Is 52,13-53,12), contemplamos a dor dos pobres, de homens e mulheres de ontem e de hoje.
O drama está aí. Um zé-ninguém... Uma mulher que morre na porta do hospital, uma criança que dorme debaixo das marquises, um idoso... de repente começa a gritar, a questionar sábios, teólogos, agentes de pastoral... Quer até discutir com Deus. Essa pessoa tem nome: Jó, do país de Hus. É um estrangeiro. Não pertence ao povo de Israel.
– E foi acolhido em Israel?
– Foi! Jó é um livro sapiencial. Entra no time de pessoas respeitadas "pela sua prática da justiça".
– De onde você tirou isso?
– Do profeta Ezequiel (14,14.20). Daniel, Noé e Jó, pela prática da justiça agradaram a Deus! E a carta de Tiago (5,11) considera Jó como os profetas que perseveraram com paciência histórica, firmes até o fim.
– O livro de Jó é profético?
– É sapiencial, mas o tom de voz é da casa da profecia! Jó, como Jeremias, grita "maldito o dia do nascimento!". As duas únicas vezes que aparece na Bíblia. O sofrimento era tão grande! Jó grita a própria dor e denuncia o sofrimento e a exploração dos fracos. Defende o direito dos pobres e das viúvas. O capítulo 24 é uma amostra da coragem e teimosia de Jó. É o grito profético de todos os excluídos na garganta de Jó.
Os três amigos devem ter levado um susto. A plateia está envolvida no desenrolar do drama. Alguém gritou o que todos sentimos, mas que ninguém tinha a coragem de dizer em voz alta!
Jó questiona o modo de pensar da época. O sofrimento era visto como castigo de Deus. Todo sofredor era pecador. Jó luta contra esse modo de refletir que, para defender a Deus, conta mentiras sobre a vida humana (Jó 13,7). Ele fala com coragem: O sofrimento não é castigo de Deus! Este é um critério-chave para interpretar o livro de Jó.
O diálogo entre Jó e Elifaz, Baldad e Sofar se desenvolve em três cenas: 1ª cena: cap. 3-11; 2ª: cap. 12-20; 3ª: cap. 21-27. Temos três rodadas de discursos. Começa Jó, responde Elifaz; fala Jó, responde Baldad; continua Jó, responde Sofar. E assim por três vezes seguidas. Há nove colocações de Jó e três de cada amigo, menos na última rodada onde Sofar não intervém. A fala de Jó é muito maior e a mais importante!
O esquema é repetitivo. Não se avança. Para concertar tudo, se programa uma nova reunião! É o que fazem os amigos de Jó. Mostram a pobreza de seus argumentos. Jó, porém, não se repete e questiona tudo!
Na segunda parte do livro, entra um quarto personagem: Eliú. Traz um pacote de quatro discursos: capítulos 32 a 37. A ideia original que propõe é uma teoria "pedagógica" do sofrimento.
Um novo rosto de Deus
Deus não é monopólio de ninguém! Quando alguém diz "isto é Deus", estamos na porta do palavrão ou da idolatria. Jó protesta, justamente! Lembremos a reflexão sobre Deus de Santo Agostinho. Ele alerta para uma identificação apressada de Deus: "Olha, se entendes, não é Deus! Se entendes, não é realmente Deus!" viu? Ouviu?
O debate com Jó terminou num empate técnico ou num fracasso total. Os amigos não conseguem convencer a Jó, e não saem convencidos de que ele tenha razão. A discussão não soluciona o problema.
Continua o diálogo. Estamos na parte mais alta da obra. Deus, provocado por Jó, é o único que tem uma palavra a dizer sobre o abismo do mal. Por isso, o próprio Deus entra na conversa com dois discursos (Jó 38-41). No primeiro, Deus responde a Jó e o questiona, descrevendo a sabedoria divina, espalhada pelo Universo (Jó 38-39). Entre os dois discursos, se encaixa uma breve confissão da pequenez de Jó 40,3-5. Deus continua falando sobre o modo de governar e de seu poder criador, lutando contra o mal e a injustiça, capaz de dominar as forças do mal (40,6-41,26)
Antes de fechar o pano, Jó diz a última palavra. Nesse testemunho de Jó e na sentença de Deus, o autor nos entrega a chave para entender e avaliar o debate. Vale a pena lermos a conclusão: "Eu falei, sem entender, de maravilhas que superam a minha compreensão. Tu disseste: 'Escute-me, porque vou falar. Vou interrogá-lo, e você me responderá'. Eu te conhecia por ouvir falar de ti, mas agora meus olhos te viram. Por isso me retrato e me arrependo sobre o pó e a cinza" (Jó 42,3-6).
O teatro acabou. Reaparece o narrador para contar o fim da história. Deus mesmo se dirige a Elifaz: "Estou irritado contra você e seus dois amigos, porque vocês não falaram corretamente de mim como falou o meu servo Jó. Vão até o meu servo Jó... ele intercederá por vocês. Em atenção a ele, eu não os tratarei como a insensatez de vocês merece, porque vocês não falaram corretamente de mim, como falou o meu servo Jó".
Todo aquele que estava torcendo por Elifaz, Baldad e Sofar (de Eliú não se fala no fim) recebe agora a resposta de Deus. É interessante confrontar o começo da vida de Jó (cap.1) e o final da história.
Veja as diferenças e a novidade que traz a conclusão. Só aparentemente se parece com o início. Jó procura o rosto de Deus, por caminhos inéditos e em momento nenhum aceita um Deus feito a imagem do homem. A partir da vida e da experiência, descobre e fala do rosto vivo de Deus, sempre novo, como o sol de cada dia. Jó, como Jesus, nos convida a passar de conhecer a Deus "de ouvidas" a "contemplá-Lo com os próprios olhos!" Um desafio e tanto!
Jó: uma história com final feliz
Vamos passear pelo livro de Jó. Se eu tivesse que falar para crianças contaria assim. "Era uma vez um homem... chamado Jó. O país dele se chamava Hus. Jó era um homem justo, amava a Deus e evitava fazer coisas ruins. Tinha sete filhos e três filhas. Possuía muitas ovelhas, bois, camelos, cavalos. Era o rei do gado. Era o mais rico de todos. Era um cara legal!
As coisas começaram a ir mal e perdeu tudo. Jó procurava entender o recado Deus e dizia: Deus deu, Deus tirou. Bendito seja Deus!
Mesmo perdendo tudo, não se queixava com Deus, com o destino ou com a sorte dele. Depois de muitas provas, Deus encheu de bens a casa dele e dobrou tudo o que tinha no começo e vivia feliz, coberto de anos em companhia dos filhos e filhas, e dos netos".
– Gostaram da história?
– Gostamos. É uma história linda, com final feliz!
– Vamos ler juntos. Está no livro de Jó, capítulo primeiro e segundo. E nós, feito crianças, depois de ler os dois primeiros capítulos, vamos pular alguns capítulos... até chegar ao capítulo 42. É só ler o capítulo 42, do versículo 10 a 17.
Vamos ao teatro
Os entendidos dizem que alguém encontrou essa história e aproveitou para debater o tema: o sofrimento do inocente. O que fez? Pegou as pontas do começo e do fim. Esticou... e no meio encaixou do capítulo 3 ate 42,9. Simples e criativo!
Podemos imaginar que estamos no teatro. As luzes apagadas, uma luz tênue na sala, música de fundo, o narrador entra em ação... "Era uma vez... um homem chamado Jó, da terra de Hus. Jó era íntegro e reto, temia a Deus e evitava o mal..." e continua narrando. O sofrimento se abate sobre ele. Perde tudo o que tem inclusive os filhos, cai doente e acaba num monte de lixo. A única coisa que lhe sobra é um caco para coçar as feridas (Jó 2,7-8). A própria esposa o aconselha de amaldiçoar a Deus. Mesmo assim Jó permanece fiel (Jó 1,20; 2,9-10) até que chegam três amigos que, diante do enorme sofrimento, ficam sem palavras. Todo o mundo está em silêncio, acompanhando um homem na dor. Silêncio, dor, silêncio... por sete dias e sete noites!
O narrador sai. Começa o debate. Na cabeça fica o tema e o roteiro que nos entregaram na entrada: Prólogo (cap. 1-2) e Conclusão (42,7-16). Diálogo entre Jó e seus amigos (3-27). Elogio da Sabedoria (28). Discurso de Jó (29-31). Discursos de Eliú (32-37). Diálogo entre Jó e Deus (38 até 42,6).
O grito e a teimosia de Jó
Ainda na escuridão, percebemos as silhuetas de Jó e seus amigos. De repente se escuta um grito no meio do silêncio de uma semana e de uma vida de desespero. Alguém grita. Não dá para reconhecer o rosto (Jó 2,12). Abre a boca e amaldiçoa o dia de seu nascimento (Jó 3,1). Estamos acompanhando uma pessoa que está na amargura (3,20) e "vive sem paz, sem tranquilidade e sem descanso, em contínuo sobressalto" (Jó 3,26). Nesse rosto desfigurado, como aquele que retrata Isaías (Is 52,13-53,12), contemplamos a dor dos pobres, de homens e mulheres de ontem e de hoje.
O drama está aí. Um zé-ninguém... Uma mulher que morre na porta do hospital, uma criança que dorme debaixo das marquises, um idoso... de repente começa a gritar, a questionar sábios, teólogos, agentes de pastoral... Quer até discutir com Deus. Essa pessoa tem nome: Jó, do país de Hus. É um estrangeiro. Não pertence ao povo de Israel.
– E foi acolhido em Israel?
– Foi! Jó é um livro sapiencial. Entra no time de pessoas respeitadas "pela sua prática da justiça".
– De onde você tirou isso?
– Do profeta Ezequiel (14,14.20). Daniel, Noé e Jó, pela prática da justiça agradaram a Deus! E a carta de Tiago (5,11) considera Jó como os profetas que perseveraram com paciência histórica, firmes até o fim.
– O livro de Jó é profético?
– É sapiencial, mas o tom de voz é da casa da profecia! Jó, como Jeremias, grita "maldito o dia do nascimento!". As duas únicas vezes que aparece na Bíblia. O sofrimento era tão grande! Jó grita a própria dor e denuncia o sofrimento e a exploração dos fracos. Defende o direito dos pobres e das viúvas. O capítulo 24 é uma amostra da coragem e teimosia de Jó. É o grito profético de todos os excluídos na garganta de Jó.
Os três amigos devem ter levado um susto. A plateia está envolvida no desenrolar do drama. Alguém gritou o que todos sentimos, mas que ninguém tinha a coragem de dizer em voz alta!
Jó questiona o modo de pensar da época. O sofrimento era visto como castigo de Deus. Todo sofredor era pecador. Jó luta contra esse modo de refletir que, para defender a Deus, conta mentiras sobre a vida humana (Jó 13,7). Ele fala com coragem: O sofrimento não é castigo de Deus! Este é um critério-chave para interpretar o livro de Jó.
O diálogo entre Jó e Elifaz, Baldad e Sofar se desenvolve em três cenas: 1ª cena: cap. 3-11; 2ª: cap. 12-20; 3ª: cap. 21-27. Temos três rodadas de discursos. Começa Jó, responde Elifaz; fala Jó, responde Baldad; continua Jó, responde Sofar. E assim por três vezes seguidas. Há nove colocações de Jó e três de cada amigo, menos na última rodada onde Sofar não intervém. A fala de Jó é muito maior e a mais importante!
O esquema é repetitivo. Não se avança. Para concertar tudo, se programa uma nova reunião! É o que fazem os amigos de Jó. Mostram a pobreza de seus argumentos. Jó, porém, não se repete e questiona tudo!
Na segunda parte do livro, entra um quarto personagem: Eliú. Traz um pacote de quatro discursos: capítulos 32 a 37. A ideia original que propõe é uma teoria "pedagógica" do sofrimento.
Um novo rosto de Deus
Deus não é monopólio de ninguém! Quando alguém diz "isto é Deus", estamos na porta do palavrão ou da idolatria. Jó protesta, justamente! Lembremos a reflexão sobre Deus de Santo Agostinho. Ele alerta para uma identificação apressada de Deus: "Olha, se entendes, não é Deus! Se entendes, não é realmente Deus!" viu? Ouviu?
O debate com Jó terminou num empate técnico ou num fracasso total. Os amigos não conseguem convencer a Jó, e não saem convencidos de que ele tenha razão. A discussão não soluciona o problema.
Continua o diálogo. Estamos na parte mais alta da obra. Deus, provocado por Jó, é o único que tem uma palavra a dizer sobre o abismo do mal. Por isso, o próprio Deus entra na conversa com dois discursos (Jó 38-41). No primeiro, Deus responde a Jó e o questiona, descrevendo a sabedoria divina, espalhada pelo Universo (Jó 38-39). Entre os dois discursos, se encaixa uma breve confissão da pequenez de Jó 40,3-5. Deus continua falando sobre o modo de governar e de seu poder criador, lutando contra o mal e a injustiça, capaz de dominar as forças do mal (40,6-41,26)
Antes de fechar o pano, Jó diz a última palavra. Nesse testemunho de Jó e na sentença de Deus, o autor nos entrega a chave para entender e avaliar o debate. Vale a pena lermos a conclusão: "Eu falei, sem entender, de maravilhas que superam a minha compreensão. Tu disseste: 'Escute-me, porque vou falar. Vou interrogá-lo, e você me responderá'. Eu te conhecia por ouvir falar de ti, mas agora meus olhos te viram. Por isso me retrato e me arrependo sobre o pó e a cinza" (Jó 42,3-6).
O teatro acabou. Reaparece o narrador para contar o fim da história. Deus mesmo se dirige a Elifaz: "Estou irritado contra você e seus dois amigos, porque vocês não falaram corretamente de mim como falou o meu servo Jó. Vão até o meu servo Jó... ele intercederá por vocês. Em atenção a ele, eu não os tratarei como a insensatez de vocês merece, porque vocês não falaram corretamente de mim, como falou o meu servo Jó".
Todo aquele que estava torcendo por Elifaz, Baldad e Sofar (de Eliú não se fala no fim) recebe agora a resposta de Deus. É interessante confrontar o começo da vida de Jó (cap.1) e o final da história.
Veja as diferenças e a novidade que traz a conclusão. Só aparentemente se parece com o início. Jó procura o rosto de Deus, por caminhos inéditos e em momento nenhum aceita um Deus feito a imagem do homem. A partir da vida e da experiência, descobre e fala do rosto vivo de Deus, sempre novo, como o sol de cada dia. Jó, como Jesus, nos convida a passar de conhecer a Deus "de ouvidas" a "contemplá-Lo com os próprios olhos!" Um desafio e tanto!
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